A bastonária da OCC tem defendido, reiteradamente, que as contas públicas devem ser validadas por contabilistas certificados, algo que já está previsto na lei, mas que teima em não ser regulamentado e passado à prática. Como é que o TC avalia o marcar passo deste processo?
O Tribunal considera que é bem-vindo tudo o que possa ser um trabalho conjunto ou prévio com outros organismos no sentido de contribuir para a legalidade financeira das contas públicas. Nesse âmbito, o Tribunal considera que o trabalho dos contabilistas certificados na apreciação, validação e certificação das contas públicas é um importante contributo para essa finalidade comum, que é garantir a legalidade financeira.
Na sua perspetiva, estes profissionais podiam ser uma espécie de «guarda avançada» do TC na defesa do interesse público e da prestação de contas?
Sim. Porventura, não usaria o termo que usou, mas os profissionais exercem uma função de cooperação e articulação entre vários organismos e entidades tendo como objetivo comum: termos contas públicas certas e verdadeiras.
Falemos agora da sustentabilidade, que foi tema no Encontro de Auditores Gerais da OCDE e responsáveis de Instituições Superiores de Controlo, no qual participou, em Paris. Como é que estão as entidades públicas portuguesas ao nível do cumprimento das práticas de sustentabilidade?
É um caminho que está a ser feito. Seguramente não podemos garantir que está numa fase avançada. O objetivo é assegurar a sustentabilidade da nossa sociedade e do nosso Estado. Desse ponto de vista trabalharemos todos em conjunto nesse sentido e o Tribunal continuará atento a esta questão na sua atividade de auditoria.
No âmbito da certificação do relato não financeiro, ainda se aguarda a transposição da diretiva europeia sobre a sustentabilidade. Como é que o TC antecipa este processo?
O TC aguarda a transposição da diretiva e logo veremos como será concretizada. Provavelmente esse será um projeto de diploma que deverá ser apresentado ao TC, em sede de procedimento legislativo, para emissão de parecer. Neste momento, não quero estar aqui a pressionar o poder político-legislativo, mas acredito que é uma matéria em que fará sentido ouvir o TC.
O Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses, apoiado desde a primeira hora pela OCC e o TC, inicialmente encarado com desconfiança, é hoje uma referência para o poder local. Na apresentação da última edição, um dos seus primeiros atos públicos, salientou que o Anuário é um instrumento de enorme utilidade para a atividade do próprio Tribunal. O envolvimento com a academia constitui um valor acrescentado?
Esse é o exemplo de um projeto de sucesso que reflete a cooperação entre vários atores da nossa sociedade, envolvendo organismos institucionais e aquilo a que se costuma chamar a sociedade civil. É uma iniciativa de grande utilidade que permite aos municípios a comparação entre si e também ao TC por permitir ir buscar importante informação para a sua atividade, nomeadamente para análise das áreas ou atividades que devem merecer uma maior atenção em sede de auditorias. Esta é, também, uma forma do TC interagir com a sociedade, abrindo o funcionamento do Tribunal à discussão e debate com outros atores. A academia é um dos planos em que esse diálogo pode ser mais proveitoso.
Referiu numa entrevista recente que «o contexto autárquico cria oportunidades para a prática de atos ilegais, muitas vezes por falta de preparação dos serviços». Em ano eleitoral teme que possa haver descontrolo e tentação para que se cometam ilegalidades?
Quando proferi essa afirmação estava a pensar em autarquias de menor dimensão, com uma estrutura orgânica menos sólida, e que de repente são objeto de transferência de atribuições e competências, não tendo os seus serviços preparados, no imediato, para dar resposta a essas solicitações. E isso nota-se muito no plano da contratação pública e também na contração de empréstimos ou recurso a fundos, na medida em que não estão habituados a aplicar esta legislação, ocorrendo, por vezes, erros graves ou desconsideram as normas, por desconhecimento do quadro legislativo, etc. Em suma, são serviços que têm de merecer um acompanhamento especial para garantir que não se cometem ilegalidades financeiras graves. Mas há outros problemas: por exemplo, organizações que não planeiam atempadamente a contração de empréstimos, o recurso aos fundos ou a celebração de contratos de utilização de bens ou serviços acabam por, à ultima hora, lançar mão a procedimentos mais simples, como é o caso do ajuste direto em vez de recorrer ao concurso público. E o que acontece é que muitas vezes a solução encontrada não tem enquadramento legal. São fatores que ajudam ao incumprimento da lei, prejudicando a boa aplicação dos dinheiros públicos.
Quer com isso dizer que há mais imprudência e desleixo do que propriamente uma cultura de corrupção?
Não acho que exista uma cultura de corrupção no verdadeiro sentido da palavra. O que não quer dizer que não existam casos de corrupção, evidentemente que sim. O problema é que enquanto povo somos pouco dados ao planeamento e é esse «deixar andar e depois logo se vê» que gera um maior risco de mau uso ou uso indevido dos dinheiros públicos e tem de ser combatido. Por isso, defendo que é preciso atuar no plano preventivo com a exigência de planeamento atempado para evitar soluções de improviso e de última hora que frequentemente geram desconformidades com a lei.
Ainda a semana passada fez uma advertência pública a uma câmara municipal, mais concretamente a de Fafe, por ter contratado os serviços informáticos através de ajuste direto, quando devia ter sido por concurso público...
Está a ser equacionado no plano do Direito da União Europeia e é de lá que provém o quadro legal base a revisão das diretivas europeias em matéria de contratação pública, no sentido de uma simplificação dos procedimentos neste âmbito. Admito que não seja um processo rápido, mas apenas quando estiver concluído é que podemos ter uma melhor perspetiva sobre o que poderá mudar.
A morosidade nas decisões e a burocracia que envolvem os processos em Portugal são uma tentação para que se contorne a lei?
Uma forma de prevenirmos este tipo de ilegalidades é encurtarmos o tempo de decisão. O encurtamento dos tempos de decisão nas instituições públicas ajudaria a promover uma menor necessidade ou tentação de cometer ilegalidades. Se eu tiver uma decisão rápida, não vou à procura da decisão por outra via ou tentar influenciar o sentido da decisão. É por isso fundamental reduzir a burocracia e simplificar os processos de decisão. Nem sempre é um equilíbrio fácil, porque é preciso equilibrar com as garantias dos interessados em cada procedimento, mas é fundamental encurtar os prazos e os tempos de decisão.
O TC tem um formulário disponível no seu site para a formalização de denúncias anónimas. O volume de queixas tem aumentado?
Sim, tem aumentado de forma progressiva. Contudo, a maior fatia das denúncias tem origem no plano das atuações das entidades autárquicas, ou seja, no contexto do poder local.
O Conselho de Prevenção da Corrupção, criado em 2008, junto do TC, cessou as suas funções na sequência da instalação definitiva do Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC). Na última semana o governo aprovou a alteração da orgânica do MENAC, deixando de competir ao Presidente do TC e ao Procurador-Geral da República a proposta de nomeação para a liderança da agência anticorrupção. Trata-se de um retrocesso?
Foi criado um projeto de diploma de alteração do regime do MENAC, que ainda não foi aprovado definitivamente. Numa análise comparada entre os diferentes regimes de designação de membros das entidades administrativas independentes constata-se que há vários tipos e modelos de designação desses órgãos dirigentes. Este modelo que está a ser agora implementado não difere muito do que já existe relativamente a outros regimes, designadamente, as autoridades reguladoras independentes. O TC está a ser consultado sobre o teor desse projeto e vamos muito em breve formalizar o nosso parecer sobre a alteração desse regime.
Também na última semana no ranking da perceção da Transparência Internacional, Portugal recuou para a 43.º posição em 180 países. José Mouraz Lopes, juiz conselheiro do TC, declarou, em entrevista ao "Público", que o aumento da corrupção tem a ver com «a consciencialização das pessoas». Partilha a visão que a sociedade está mais desperta para este fenómeno?
Apenas uma nota: O TC fala a uma só voz, por isso essas declarações do senhor juiz conselheiro foram feitas noutra qualidade. Respondendo à sua pergunta, a perceção é sempre um fator perigoso para pautarmos as nossas condutas em função dela. Não estou com isto a dizer que deva ser desconsiderada, mas não deve ser entendida como o ponto fulcral de ação. As pessoas ouvem, em particular através da comunicação social, falar muito sobre corrupção, mas sinceramente não creio que haja um ambiente ou uma cultura nacional propensa à corrupção. Num passado mais longínquo admito que a realidade tenha sido diferente. E, à semelhança do que atrás referi, também isto se deve quando as instituições públicas falham, no sentido de não decidirem em tempo útil, deixando as empresas e as pessoas à espera por decisões. É por isso que sucede ser mais comum o contorno a regras legais e a busca de soluções à margem desse enquadramento legal. O Estado português, em sentido amplo, fez um caminho, ao longo destas décadas, que coloca a sociedade e o Estado acima dessa cultura de corrupção.