Opinião
Divagação contabilistica
14 Janeiro 2004
Opinião do Prof. Rogério Fernandes Ferreira - Diário Económico
Quem se ocupa de gestão, contabilidade, impostos também encara estas matérias de modos não limitados a exames quantitativos. Vamos hoje formular considerações de outras naturezas. Assim começamos por observar que o velho guião contabilístico «quem recebe deve, quem entrega tem a haver» exige um primeiro reparo - é que quem recebe não fica a dever se estiver recebendo o que lhe for devido (contas saldadas). Aliás, quem recebe pode também não ficar a dever em mais situações, nomeadamente se o recebido constitui pura dádiva. Se nos dão, não se fica a dever. Contudo, importa retribuir? Há então que contabilizar? Para contabilizar o que nos é dado, torna-se necessário encontrar a base, o valor de referência, para essa contabilização. E põe-se a questão: que valor atribuir? O objecto da contabilidade é, de facto, o registo e estudo da «movimentação dos valores». Os valores a registar na contabilidade são aferidos pelo custo, custo do bem que se compra (ou permuta). Mas, não havendo compra, esse tipo de valor não existe. Efectivamente, na contabilidade, não se registava, tradicionalmente, o que nos era dado. Actualmente, porém, entende-se diferentemente, afirmando que o dado também é de contabilizar, no donatário (cf. Directriz Contabilística nº 2 da CNC - Comissão de Normalização Contabilística). Há agora possibilidade de contabilização. É que, mesmo não ocorrendo compra, subsistem directrizes contabilísticas indicam dever então contabilizar-se ao valor que se poderia comprar. Fala-se em utilizar o justo valor. Justo valor ou valor justo? Melhor, «valor justo». O que é «valor justo»? Não é apanágio do mercado subordinar-se ao que é justo. Designativo, portanto, impróprio. Porém, se a realidade em exame é algo que não se compra e não se vende (amizade), como proceder? A amizade não tem o referencial «custo» e também não tem o referencial «preço», bases de apuramento do «justo valor» . Se a amizade não tem custo, nem preço, não aparece, então, valor de referência para se contabilizar. Em termos gerais, conclui-se que há realidades com valor que não se contabilizam. Excluem-se, assim, da contabilidade realidades que, como a amizade, não encontram os referenciais «custo» e ou «preço». Terá, pois, de concluir-se haver coisas, com valor real, que a contabilidade ignora. Ou ignora ainda? A contabilidade não terá atingido estádio ideal que conduza a valorizar o que tiver valor, quando não há custo nem preço. O que não tem custo nem preço, porém, pode ser o que mais vale. Vale tanto que nem sequer há custo e ou preço. Dir-se-á que vale incomensuravelmente. Vale a vida, vale a eternidade. Vale mais do que todo o ouro do mundo, ou seja, vale um copo de égua de quem dela está à míngua no deserto. De outro modo ¿ a amizade vale tanto que a contabilidade ainda não a consegue referenciar. É um valor (ainda) incontabilizável. A contabilidade está atrasada. Não conseguiu a sua finalidade, de processamento ou movimentação de tudo o que tem «valor». Quando chegará a nova contabilidade, a da movimentação de valores como o da amizade? Ou a contabilidade não chegará até aí? Eis um repto. Uma utopia? Entretanto, já se consegue valorizar, na contabilidade, realidades como dádivas, ofertas e doações que também se diziam sem custo ou sem preço, donde incontabilizáveis (no passado). Igualmente, bens antes tidos como não económicos, livres, em abundância e hoje escassos - água, terra e muitos outros - são já objecto da Economia, foram por ela apropriados, passaram a ter «valor económico», surgindo a necessidade de sua contabilização. Conclui-se, então, questionando: será viável contabilizar a amizade? Contabilizar porque se tornará escassa, a ponto de se considerar bem económico? Ou contabilizar porque se passa a estádio superior em que a contabilidade se ocupará de «todos os valores» e não só dos económicos ? Na verdade, nas empresas, fidelidade da clientela, a reputação das marcas, a qualidade dos produtos, a imagem da empresa, etc. são já realidades de que a contabilidade se apropriou, atribuindo-lhes «valor económico», colocando-os no balanço como património real e até nos resultados, pois tal já se vende.